sábado, 25 de julho de 2020

Valorizando o que é nosso: Zélia Rosa do Nascimento


“Olha o pãaaaaoooo”, durante muitos anos no início das manhãs e finais de tarde na cidade de Touros essa frase ecoou forte e chamativa. Como se fosse uma espécie de chamado que já tínhamos fixado no pensamento. Como se aquela voz tão familiar invadisse nosso cotidiano sem pedir licença sem bater na porta e tivesse o poder de fazer com que parássemos o que estávamos fazendo e fosse ao seu encontro.

O antigo balaio de pão, substituído pelo tradicional carrinho com uma inovação a buzina de lado que fazia a festa da criançada na esperança que sua condutora desse a chance de tocar nessa buzina. Aquele carrinho percorreu nossas ruas, nossas vidas e nossa história lentamente, atravessando todos os tipos de dificuldades até sua dona dizer: é chegada a hora de parar pois tudo está mudado, mas enquanto pude e minhas forças ajudaram carrinho de pão eu te conduzi e tu me sustentantes a mim e a minha família.

A essa guerreira que conduziu esse tão famoso carrinho de pão carregava bem mais do que uma voz poderosa e um manejo para negociar com seus conterrâneos. Dentro do carrinho de pão que ela com sacrifício empurrava tinham seus sonhos, tinha o pão de cada dia não só de nossa comunidade mas de sua família, tinha a garra e o suor de uma mulher que foi pai, mãe e que com sua luta e seu pioneirismo mostrou como se faz para driblar as dificuldades sejam elas quais forem.

Aos primeiros raios de sol do novo dia aquela pessoa e sua personalidade atraia as pessoas com sua voz. Muitos ainda dormiam quando ela já visitava as ruas de nossa cidade, antes dos filhos irem para a escola, antes de saírem para o trabalho, antes mesmo de pensarem em problemas o grito interrompia qualquer pensamento. “Corre lá vai o carro do pão” e ali podíamos ver o clientes fiéis colocando os primeiros diálogos do dia rodeando o carrinho, comprando “fiado” pois ela sempre teve a confiança de todos e confiou em todos.

Muitas vezes podia-se perder o horário do carrinho passar e correr a outra rua para alcançá-lo e ouvir “o pão de coco acabou-se só de tarde agora passei agorinha lá na tua rua” e era o jeito se conformar pois a procura e freguesia sempre foi grande.

Acabando-se o dia, tendo como cenário os tourenses se preparando para o jantar e um pôr do sol por companhia ela fazia os mesmo trajetos incansavelmente em sua labuta cotidiana, agora os fatos do dia já eram outros até a escolha do pão era outro “pão francês é melhor com sopa” e assim lá se ia mais um dia na vida dessa mulher forte.

Seu empreendimento sempre se deu para sustento de seu lar, sem almejar crescimento material, Touros era ainda aquela cidade aconchegante que parecia ser uma só família, e seu trabalho era como um oficio sagrado. Até compromissos eram lembrados ou marcados de acordo com sua passagem pelas ruas. “O carro do pão já passou já ta é tarde ou o carro de pão já ta ali e fulano ainda não chegou, depois que comprar o pão eu vou...” e assim se construíam uma personagem que diria inesquecível de nossa história recente.

Com chuva, sol, frio, calor, em épocas de inflação, crises e empresários donos de padaria investindo mais e mais o carrinho caminhou, levando além de todos os sonhos da sua dona uma trajetória de vida que superou muitas barreiras para se afirmar como um alguém que merece ter seus méritos lembrados por tudo e por todos. Mulher, pioneira em um trabalho até então desempenhado por homens, suor, lágrimas e sacrifício de uma vida inteira para dar sempre o melhor em prol de sua família, esquecendo-se do tempo e de sua própria vida que sem pensar muito doou para o seu trabalho.

Há quem fique muito feliz em acordar com o canto dos pássaros, com o som das ondas do mar, mas tenho certeza que teve gente que acordou muitas e muitas vezes feliz em ouvir seu grito pois tinha certeza que o pão de cada dia estava a sua porta. E quantas vezes garotos como eu se sentiram importantes pelo pai ou a mãe dar como missão comprar o pão da manhã, ganhar o troco, poder escolher os pães que você mais gostava essa realidade só era possível devido ao trabalho desempenhado por essa pessoa que hoje ainda guarda em seu olhar aquela profundidade e inquietação de quem passou a vida vivenciado e sendo parte dos dias dos tourenses.

Hoje não podemos mais ouvir seu grito na rua um grito que se ecoasse outra vez iria mexer no coração de muita gente tenho certeza que iriam se perguntar o que está acontecendo? É ela que ta com o carrinho de novo vendendo pão? Mataria saudade dos ouvidos de parte da população que viveu essa época.

Por tudo que você é por toda história que você representa, como mãe, mulher, batalhadora Zélia Rosa do Nascimento (Zélia do pão), Touros vem lhe dizer muito obrigado.

Autor: Flávio Santos

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